sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O BUDA REBELDE


O BUDA REBELDE


Quando ouvimos a palavra “buda”, o que nos vem à mente?

Uma estátua dourada? Um príncipe jovem sentado sob uma árvore suntuosa? Ou quem sabe Keanu Reeves, no filme O Pequeno Buda? Monges de cabelo raspado em suas vestes monásticas?

Podemos fazer muitas associações ou nenhuma.
A maioria de nós está bem longe de qualquer conexão condizente com a realidade.

A palavra “buda”, no entanto, significa simplesmente “desperto” ou “acordado”. Não se refere a uma figura histórica particular, ou a uma filosofia ou religião. Refere-se à própria mente. Sabemos que temos uma mente, mas como ela é? É desperta. E com isso não quero dizer apenas que ela “não está dormindo”. Quero dizer que a mente é realmente desperta, além de nossa imaginação.


Nossa mente é brilhantemente lúcida, aberta, espaçosa e cheia de qualidades excelentes: amor incondicional, compaixão e sabedoria, que nos fazem perceber as coisas como elas realmente são. Em outras palavras, nossa mente desperta é sempre uma boa mente, nunca está turva ou confusa. Nunca é atribulada por dúvidas, medos e emoções que muitas vezes nos torturam. Pelo contrário, nossa verdadeira mente é alegre, livre de todo sofrimento.

É isso que realmente somos. Essa é a verdadeira natureza de nossa mente e da mente de todos os outros. Mas nossa mente não fica apenas parada sendo perfeita, sem fazer nada. Ela está brincando o tempo todo, criando os nossos mundos.

Se isso é verdade, então por que a nossa vida e todo o mundo não são perfeitos? Por que não somos felizes o tempo todo? Por que em um momento estamos rindo e em outro estamos desesperados? E por que pessoas supostamente “despertas” discutiriam, brigariam, mentiriam, enganariam, roubariam e fariam guerras?

O motivo é que, embora o estado desperto seja a verdadeira natureza da mente, a maioria de nós não o reconhece. Por quê? Algo se interpõe. Algo bloqueia a nossa percepção.

Claro, percebemos partes do estado desperto aqui e ali, mas, no momento em que o reconhecemos, repentinamente surgem outras coisas em nossa mente — Que horas são? Está na hora do almoço? Ah, veja, uma borboleta! — e, assim, nosso discernimento se dissipa.

Ironicamente, o que bloqueia a nossa visão da verdadeira natureza da mente — nossa mente de buda — é a própria mente, a parte dela que está sempre ocupada, que está constantemente envolvida em um fluxo contínuo de pensamentos, emoções e conceitos. Essa mente ocupada é o que acreditamos que somos. Ela é mais fácil de enxergar, como o rosto de uma pessoa sentada bem à nossa frente.

Por exemplo, o pensamento que você está tendo agora pode ser óbvio para você, ainda que não o seja para a sua consciência. Quando você sente raiva, presta mais atenção ao que o irrita do que à própria fonte de sua irritação.

Em outras palavras, você percebe o que a sua mente está fazendo, mas não vê a própria mente. Identificamo-nos com os conteúdos dessa mente ocupada — pensamentos, emoções e ideias — e acabamos pensando que todas essas coisas são nosso “eu” e que “somos assim”.

Quando fazemos isso, é como dormir e sonhar acreditando que as imagens no sonho são verdadeiras. Se, por exemplo, sonhamos que estamos sendo perseguidos por um desconhecido, isso nos é muito assustador e real. Porém, no momento em que acordamos, tanto o desconhecido quanto os nossos sentimentos de medo simplesmente desaparecem e sentimos um grande alívio. Além disso, se já soubéssemos que estávamos apenas dormindo em nossa cama, não teríamos sentido medo algum.

Da mesma forma, em nossa mente comum, somos sonhadores que acreditam que os seus sonhos são reais. Acreditamos que estamos acordados, mas não estamos. Pensamos que essa mente ocupada com pensamentos e emoções é quem realmente somos. Mas, quando acordamos, os enganos sobre quem somos — e o sofrimento que essa confusão cria — desaparecem totalmente.

Quando Buda ensinou sobre essa natureza impermanente e composta (ou agrupada) da mente relativa, ele o fez com o objetivo de apresentar a seus discípulos a natureza última da mente: a consciência imutável, pura e não fabricada.

Aqui, o budismo se separa radicalmente de conceitos teológicos, como pecado original, que veem a humanidade como espiritualmente maculada por alguma violação herdada da lei divina.

A visão budista afirma que a natureza de todos os seres é primordialmente pura e plena de qualidades positivas. Quando acordamos o suficiente ao ponto de ver além de nossa confusão, percebemos que mesmo os nossos pensamentos e emoções problemáticos são, no fundo, parte dessa consciência pura.

Reconhecer isso nos leva naturalmente a uma experiência de relaxamento, alegria e humor. Já que tudo o que vivenciamos no nível relativo é ilusório, não precisamos levar nada tão a sério. Do ponto de vista do estado último, é como um sonho lúcido, a vívida brincadeira da própria mente. Quando estamos despertos em meio a um sonho, não levamos nada do que ocorre no sonho muito a sério. É como dar uma volta nas atrações do Disney World.

Um brinquedo nos leva até o céu noturno, onde nos vemos rodeados de estrelas, com as luzes de uma cidade lá embaixo. É muito bonito e nos cativa demais, mas nunca tomamos como sendo real. E, quando entramos na casa assombrada, fantasmas, esqueletos e monstros podem nos surpreender por um instante ou um por um pouco mais de tempo, mas eles também são engraçados, porque sabemos que nada disso é de verdade.

Da mesma forma, quando descobrimos a verdadeira natureza da nossa mente, somos liberados de uma ansiedade fundamental, uma sensação básica de medo e preocupação sobre aparências e experiências da vida. A verdadeira natureza da mente diz: “Por que se estressar? Relaxe e se sinta bem consigo mesmo.”

A escolha é nossa, a não ser que tenhamos uma tendência extraordinariamente forte de lutar o tempo todo. Desse modo, até mesmo o Disney World se torna um local horrível. E isso também é escolha nossa. Nosso mundo moderno é cheio de opções: onde quer que estejamos, podemos escolher uma forma ou outra.

Muitas pessoas perguntam como é esse tipo de consciência.

Seria a experiência dessa natureza verdadeira semelhante à de se tornar um vegetal, entrar em coma ou sofrer de Alzheimer? Não. De fato, não é nada disso. Nossa mente relativa passa a funcionar melhor.

Quando damos uma folga para o nosso hábito constante de rotular, o mundo se torna límpido. Ficamos livres para ver com clareza; pensar com clareza e sentir a qualidade viva e desperta de nossas emoções. A abertura, a amplidão e o frescor da experiência fazem com que este seja um local muito bonito de se viver. Imagine-se no pico de uma montanha olhando para o mundo em todas as direções, sem obstruções.

É a isso que chamamos de experiência da natureza da mente.

O Mito do Eu

Imagine que olhamos para a nossa mão, certo dia, e reparamos que ela está fechada, formando um punho. Está segurando algo tão vital que não conseguimos largar. O punho está tão fechado que a mão chega a doer. A dor na mão viaja até o braço e a tensão se espalha pelo corpo. E isso segue por anos a fio.

Às vezes, tentamos tomar uma aspirina, assistir à televisão ou saltar de paraquedas. A vida segue, um dia esquecemos o que era tão importante e, então, a mão se abre: não há nada ali. Imagine a surpresa.

O Buda ensinou que a causa raiz de nosso sofrimento — a ignorância — é o que dá surgimento a essa tendência de agarrar. A questão que deveríamos nos colocar é: “A que estou me agarrando?” Deveríamos olhar bem fundo esse processo, para ver se realmente há algo ali.

De acordo com Buda, estamos nos agarrando a um mito. É só um pensamento que repete “eu” tantas vezes que cria um eu ilusório, tal como um holograma que tomamos por sólido e real. A cada pensamento, a cada emoção, esse “eu” aparece como o pensador e também como aquele que vivencia, e ainda assim é apenas outra fabricação da mente.

É um hábito muito antigo, tão arraigado que esse próprio agarrar se torna também ele próprio parte da nossa identidade. Se não estivéssemos nos agarrando a esse pensamento de eu, poderíamos sentir que algo muito familiar — como um amigo próximo — está faltando e, assim, uma dor crônica repentinamente desapareceria.

Como se segurássemos um objeto imaginário, nosso agarramento ao eu não nos ajuda muito. Ele apenas nos dá dores de cabeça e úlceras, e logo desenvolvemos muitos outros tipos de sofrimento com base nele. Esse “eu” passa a defender a todo custo os próprios interesses, porque imediatamente percebe um “outro”. E, no instante em que temos o pensamento de “eu” e “outro”, o drama de “nós” e “eles” se desenvolve.

Tudo acontece em um piscar de olhos: agarramos o lado do “eu” e decidimos se o “outro” está a nosso favor, contra nós ou se não faz diferença. Enfim, estabelecemos as nossas intenções: com relação a um objeto, sentimos desejo e o queremos atrair; com relação a outro, sentimos medo e hostilidade e o queremos repelir; e com relação a mais um outro objeto, somos indiferentes ou apenas o ignoramos. Dessa forma, o nascimento das nossas emoções e dos nossos julgamentos neuróticos é resultado de nosso agarramento ao “eu” e ao “meu”.

No fim, não estamos livres nem mesmo frente aos nossos próprios julgamentos. Admiramos algumas de nossas qualidades e logo nos inflamos todos, desdenhamos outras qualidades e logo criticamos a nós mesmos, e assim ignoramos boa parte da dor que realmente sentimos, totalmente engajados nessa luta interna para sermos felizes com quem somos.

Por que persistimos nisso, quando nos sentiríamos tão melhor e mais relaxados se simplesmente soltássemos?

A verdadeira natureza da nossa mente está sempre presente, mas, por não enxergá-la, acabamos nos apegando ao que conseguimos ver e tentando fazer dela algo que não é.

Complicações desse tipo parecem ser o único jeito que o ego tem para se manter, isto é, criando um labirinto ou uma sala de espelhos para nos confundir. Nossa mente neurótica se torna tão revolta e enredada que fica difícil para nós rastrearmos o que ela está fazendo.

Investimos nesse grande esforço apenas para nos convencer de que encontramos algo sólido dentro da natureza insubstancial de nossa mente: uma entidade separada e permanente — algo que podemos chamar de “eu”. Ainda assim, ao fazer isso, estamos indo na contramão da verdadeira natureza das coisas, da realidade.

Estamos tentando congelar a experiência, criar algo sólido, tangível e estável com algo que não tem essa natureza. É como pedir ao espaço que ele se torne terra ou para a água que se torne fogo. Pensamos que abandonar esse pensamento de um “eu” é uma loucura, pensamos que a nossa vida depende desse pensamento. Mas, na verdade, a nossa liberdade depende de nós o abandonarmos.

— Trecho do livro O Buda Rebelde, por Dzongchen Ponlop.

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http://stelalecocq.blogspot.com/2015/09/o-buda-rebelde.html
Fonte - Despertar Coletivo

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