quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A CIÊNCIA DA FELICIDADE


A CIÊNCIA DA FELICIDADE
Por Pedro Tornaghi
Astrólogo e professor de meditação



Aos vinte e poucos anos eu morava no Posto 6, em Copacabana, e costumava passar todo dia, no caminho de casa, por um mesmo mendigo que, sempre, de maneira renovada, me impressionava. Era um homem-toco que, a cada sinal fechado, deslizava em um rudimentar carrinho de rolimã entre os automóveis parados enquanto pedia dinheiro aos motoristas.

O que me desnorteava naquele rapaz era o constate sorriso, talvez o mais generoso que eu tenha visto até hoje. Ele disparava para cada motorista seus dentes arreganhados, desprovidos de vergonha e com franqueza ímpar; fosse após uma contribuição espontânea, recusa de atenção, indiferença ou até mesmo desprezo.

Um dia, depois de meses de cumprimentos cordiais entre nós, como que atraído por um ímã, me aproximei para tentar desvendar minha crescente curiosidade sobre o enigma: de onde vinha aquela felicidade? Foi o que perguntei. Olhando de baixo para cima ele, desenvolto, me respondeu: “eu não tenho nada a perder”.

Naqueles dias, um outro sorriso parecido, também passou a me chamar a atenção. Tratava-se de mais um mendigo. Eu morava no segundo andar de um tradicional edifício e a janela de meu quarto dava visão frontal para o Clube de Bridge de Copacabana, cuja atividade se estendia sempre por toda a noite. Eu que era leitor apaixonado de Dostoievski e acabara de ler “O Jogador”, gostava de me debruçar na janela e observar os tipos curiosos que entravam no clube para dedicar noitadas insones aos prazeres do jogo.

Havia uma escada estreita na entrada do clube por onde mulheres luxuosamente vestidas e homens de aparência bem-cuidada e distinta encolhiam suas poses e vestes para adentrar no templo do deus das sortes e azares. E, justo nessa escada estreita, todas as noites, independente de chuva ou estrelas no céu, se instalava, como um diligente e fiel cão de guarda, o mendigo de idade avançada.

Eu era músico em inicio de carreira e costumava chegar em casa tarde. Às vezes tinha o que comer, às vezes não. Numa noite de muito frio, em que cheguei e fiz uma omelete, fui à janela comer e devorei avidamente a iguaria enquanto admirava mais uma vez o incansável e plácido mendigo à porta do clube.

Ao acabar de comer, corri à cozinha, ansioso, para preparar outra omelete, agora para o velho e cansado homem. Imaginava sua fome maior e mais desesperada que a minha. Desci com o prato na mão feliz por, naquela noite, ter o que compartilhar e o ofereci ao homem imaginando, claro, que teria o prazer de assisti-lo devorando o mesmo prato que, minutos antes, aplacara o desespero de meu estômago.

Foi aí que veio a surpresa. O atento senhor aceitou o prato com os olhos, pegou-o em seguida com a mão e o colocou sobre o colo, com uma solenidade de quem desconhecia a pressa, me fitou os olhos e agradeceu num sorriso, quase similar ao do homem-toco.

Subi para minha janela achando que minha presença o inibia de comer e, observador solitário, fiquei esperando que ele começasse a comê-lo. Esperei por intermináveis minutos até que ele, contemplativo, levasse a primeira garfada à boca. A cena era curiosa, eu, escutando Mozart enquanto refletia sobre os atos daquele homem que provavelmente nem sabia quem era Mozart, mas se mostrava mais digno de ser sua platéia do que eu.

Essas duas experiências me levaram a me perguntar o que seria a felicidade. Onde moraria ela? Dentro ou fora de nós? Esses dois sorrisos eu tenho conservado dentro de mim como um troféu e como uma pergunta constante para a qual não quero uma resposta definitiva, mas, quero usá-la para investigar mais e mais as possibilidades e as verdades e mentiras sobre a felicidade.

Como na época eu era flautista e professor de yoga, comecei – movido pelo hábito – por observar a respiração de meus dois personagens casuais. Era impressionante como ambos respiravam com desenvoltura e sem esforço. Mesmo o homem-toco, com todo o esforço cotidiano dos braços para compensar a falta de pernas, respirava com uma fluência e mobilidade nas costelas que eu não via nem nos meninos da academia de yoga nem em meus treinados colegas de flauta.

Fiquei pensando então que, se houvesse uma ciência ou uma arte da felicidade, essa devia passar pela respiração e, como os dois se colocavam sempre na posição de observadores desidentificados de tudo que os cercava, essa ciência deveria passar também por algo muito próximo da meditação. Valia à pena perguntar: se o estado de espírito diferenciado daqueles dois homens os levou a respirar de maneira tão incomum, será que se mudássemos nossa respiração também poderíamos, por via oposta, alcançar um estado de espírito incomum?

Aqueles dois homens me possibilitaram uma compreensão diferenciada dos processos de inteiração entre respiração e estado emocional e, por toda a minha vida, vêm me inspirando a atentar para o que é essencial e o que é supérfluo na utilização de técnicas respiratórias e na pratica de meditação.

Pensar na respiração deles me trouxe respostas interessantes para o milenar dilema do quanto a felicidade depende de fatores externos ou de atitudes internas. Respirar é algo que envolve e integra os universos interno e externo. A respiração é uma ponte natural, sutil e palpável, entre os dois. Talvez a resposta estivesse na liberdade e na inteligência com que nos permitimos integrar essas duas realidades. E talvez a respiração fosse o meio mais indicado para realizarmos essa integração.

O olhar daqueles dois homens me possibilitou entender de maneira diferente todas as – boas – técnicas de respiração e meditação que vim a conhecer mais tarde. Dois olhares totalmente desprovidos de mágoa, cobrança ou expectativa, vindos de homens alijados de acesso às fontes de prazer mais disputadas pelas pessoas comuns. Aqueles dois olhares me ensinaram a valorizar, mas sem superestimar, o alcance das técnicas de autoconhecimento que aprendi.

Sim, as técnicas de respiração podem nos levar muito longe, mas desprovidas de uma certa postura, por mais longe que nos levem, elas jamais nos levarão ao grande e definitivo salto. Ao salto para a liberdade e a inteligência que os dois professores informais encarnavam.

Com o homem-toco, aprendi o segredo do como fazer força sem fazer esforço. Notando como ele remava vigorosamente sua pequena plataforma sobre rodas pelo chão e, mesmo assim, continuava respirando livremente, percebi que ele exercitava uma das mais interessantes artes disponíveis ao homem, a de estar em um ritmo interno e outro externo ao mesmo tempo.

Ele podia correr com o carrinho e continuar perfeitamente calmo por dentro. E observando como ele, a todo momento, levantava os braços em diagonal para acomodar sua pequena bolsa a tiracolo, percebi com que sutileza ele desenhava uma dança mágica e natural, que alongava os músculos intercostais. Ele me revelou algumas das chaves que uso até hoje para desbloquear caixas torácicas de amigos e alunos.

Já com o senhor do clube de bridge aprendi os segredos da calma trazida pela respiração lenta e sem esforço. A maneira gaiata com que ele cumprimentava os jogadores de bridge noturnos, batendo continência com a palma da mão para cima, servia para descontrair e aproximar os bem-vestidos.

Era uma espécie de gesto assinatura, que lhe dava uma aura de inocência e de inofensividade. Ele fazia menção de bater continência e, quando sua mão chegava à testa, ele virava a palma para o céu e continuava o gesto como se fosse uma coreografia pessoal, passando a mão sobre toda a cabeça enquanto sorria largamente. Como quem dissesse: te pequei, hein. O gesto, engraçado, nunca falhava em descontrair as pessoas.

Imitando o gesto de minha janela, senti uma imediata e inédita ventilação na parte alta do pulmão e eu, que estudara com tantos professores de flauta, diversas e eficientes maneiras de controlar a saída do ar dessa região para que houvesse uma reserva extra de ar que permitisse maior fôlego em frases musicais longas, percebi que aquele homem ali, naquele momento, me dava o caminho, que mais tarde vim a desenvolver, de como prolongar o fôlego nessa região.

Os movimentos aparentemente ingênuos que os dois faziam escondiam em si as bases de um verdadeiro balé iniciático capaz de dissolver resistentes tensões crônicas da caixa torácica e desenvolver estados de espírito preciosos e raros.

Fonte: Pedro Tornaghi

LUZ!
STELA

Nenhum comentário:

Postar um comentário